domingo, 18 de abril de 2021

Dois de Maio - Julia

 Julia já não aguentava mais olhar pra cara de Marcos. Difícil dizer o que mais a irritava: a cara de panaca capaz de enganar os desavisados, a insistência em se fazer de inocente, ou a possibilidade de ele realmente ser babaca a ponto de se achar inocente. Sempre que ela passava na frente da loja onde Marcos trabalhava, era quase como se pudesse ouvir as batidas do seu coração e o suspirar fingido de um cachorro caído da mudança. Ela chegou a dar a volta no quarteirão para desviar desse constrangimento algumas vezes mas logo se deu conta da importância desproporcional que estava dando a um ex e retomou seu caminho habitual. Aprendeu a ignorá-lo completamente. Primeiro era forçado, uma ligação imaginária que ela sempre atendia quando faltavam 10 metros para entrar no campo de visão de Marcos; mas logo não era mais necessário fingimento, ignorá-lo se tornou um hábito tão natural que ela chegou a se esquecer da razão de estar fingindo um telefonema: "Por que eu ia pegar o celular mesmo?" Só se lembrou quando viu a sorveteria onde passara tanto tempo com Marcos. Sentiu um aperto no coração. Felizmente isso aconteceu depois de já ter passado por ele sem dirigir-lhe um olhar sequer. Mas não deixava de ser um constrangimento. Quando ele arrumou um novo emprego, longe dela, foi um grande alívio. Seis meses se passaram sem que ela esbarrasse com Marcos, nunca mais o viu, nunca mais teve notícias. Não até aquele 2 de Maio.

Quando Julia se deu conta de que não daria tempo de dormir antes de ir para o trabalho, sua ressaca se antecipou e ela cutucou Luiza com um sinal de "vamos embora?". Luiza não estava nem um pouco com vontade de ir embora, respondeu baixinho:

-Que foi, menina? Tá louca? Ou está se sentindo mal?

-Não, moça! É que já são quase três da manhã e eu não vendo pack na internet, né? 

-Mas você trabalha amanhã?

-Amanhã não Lu, daqui a pouco! Já são quase três, olha aqui. Sábado não vendemos quase nada mas tem que abrir e ficar lá olhando pro teto do mesmo jeito.

-Entendi. Só que eu não vou poder ir não... -disse encarando um rapaz que estava mais adiante- tenho negócios a resolver aqui ainda. Você me perdoa?

-Sério isso? Vai ficar raparigando e me deixar ir embora sozinha?

-Exatamente. 

-Você não presta! - Disse aos risos- Tudo bem. Juízo! 

Se despediram. Julia foi em direção à porta e Luiza em direção a seu alvo.

O problema de ir embora sem a amiga é que Julia contava com ela para dividir a corrida. Estavam em uma boate muito longe de casa e, três da manhã, era possível que só essa viagem consumisse o dinheiro equivalente ao sábado trabalhado. Julia olhou em volta em busca de alguém conhecido, alguém que pudesse dividir com ela o uber, mas em seguida balançou a cabeça e caiu na real; se tivesse algum conhecido na festa ela teria visto antes. E chamar uma pessoa estranha para dividir uma corrida àquela hora, naquele lugar... Se deu por vencida. A corrida realmente saiu muito cara mas pelo menos o carro chegou muito rápido e alguns minutos e três cochiladas depois ela já estava em casa. 

Quando Julia já estava arrumada, de banho tomado e maquiagem em dia, o relógio a alertava que o café deveria ser sacrificado para não perder o ônibus. Isso era péssimo porque o gosto de vodka ruim ainda estava em sua boca. O hálito a preocupava mas a possibilidade de se atrasar era pior. Pegou algumas balas e saiu correndo para o ponto de ônibus onde esperou mais 15 minutos antes que seu ônibus apontasse na esquina.

-Se eu soubesse que essa bosta ia atrasar, eu teria tomado meu café. - Murmurou. 

-Oi? - Disse uma senhora sentada a seu lado

-Nada, só estou pensando alto. Está bastante atrasado hoje, né?

-E quando não está? Esquisito é quando chega na hora!

Era verdade. Julia apenas acenou com a cabeça concordando. Entraram todos no ônibus vazio mas apenas alguns pontos a frente já era impossível se movimentar um centímetro sem espremer alguém. Julia não notou nada disso, acordou com o cobrador cutucando ela com a caneta:
-Moça, é aqui que você desce, não? 

-Hum? Carái! Nossa, moço! Obrigada! Dormi... Obrigada mesmo! -Enquanto agradecia ia se apertando entre a multidão de mulheres que ela nem viu entrar. 

Julia chegou na loja, que já estava aberta, cumprimentando a todas como fazia todos os dias. Achou que ninguém ia perceber... Que engano.

-Menina, você acordou agora, foi? -Perguntou Taís, preocupada.

-Está assim tão na cara? Eu dormi no ônibus, se não fosse o cobrador eu teria passado direto. 

-Pois está sim, viu. Mas não preocupa, só vai lá lavar o rosto e dar uma retocada na cara; cê tá borrada.

-Sério?! Que horror! Obrigada por avisar!

Julia foi retocar a maquiagem e Taís ficou torcendo para a patroa chegar a tempo de flagrar o hálito etílico da colega. 

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